Há alguns dias ouvi duas perguntas de uma moça chamada Julia Duarte (@tristezinha, via @peresgram): “qual é a sua kriptonita?” e “se essa kriptonita tivesse nome, qual seria?”. O vídeo falava de sensibilidade e sobre como lidamos com nossos sentimentos e nossas maiores dores.
Sabe quando chega e fica? Passei alguns dias pensando nisso.
Já estava num processo de acessar e liberar memórias (exercício do @espirito.selvagem, com a @vanessa.normandes e @porpaulaquintao) e foi como se uma coisa completasse a outra.
Muitas coisas que eu faço – que estudo, que chamam minha atenção, que experimento – me levam ao passado. É como se ele me chamasse. Adoro lugares, coisas e vivências que trazem o “aconchego de vó”, que têm histórias pra contar. Vejo muita beleza e arte ali. Assim como me fascina o mundo holístico e as sabedorias que permitem acessar os caminhos já trilhados, as memórias, o que já aprendemos e trazemos como bagagem dentro de nós. São como portais para lugares mágicos, igual os sótãos que eu adorava explorar quando criança, na casa da minha mãe e das minhas avós.
Mas não é no passado que eu vivo. Pelo contrário, tenho muita facilidade em esquecer, em me perder nas minhas memórias, em confundir datas e embaralhar detalhes. O futuro é um lugar mais confortável. Sei que o presente é onde as coisas acontecem e onde deveríamos ter atenção total. Mas meu coração pula – de alegria e de arrepio ao mesmo tempo – com a expectativa de coisas novas e diferentes.
E aí é que está o enrosco, como diz a Paula Quintão.
O mundo me chama lá fora. Eu vou pra janela e olho, encantada, pra tudo que vejo, pensando em tudo que posso aprender e visitar. Vou pra porta, louca pra sair e me jogar no mundo; abrir o peito e abraçar tudo e mais um pouco do que ele tem.
Mas atravessar a porta é minha kriptonita.
(E, ironicamente, toda novidade traz junto uma porta diferente pra enfrentar.)
Identifiquei esse medo numa memória de infância, dos primeiros anos de escola. A pior hora do dia era essa: atravessar a porta de grades que me levava pra rua. Passar por aquela porta era minha liberdade. Era tudo que eu queria, sair e poder voltar pra casa. Mas atravessa-la significava também enfrentar a pior das batalhas. Passar por um bando de meninos que estavam sempre lá, prontos pra me agarrar e me fazer sentir as piores sensações e sentimentos que me lembro ter experimentado.
Muitas meninas e mulheres passaram e passam por isso. Algumas levam de boa, outras devem entender o que digo. Eu, volta e meia passo por essa memória e não gosto do que sinto. Como eu disse, a minha kriptonita.
O nome dela? INSIGNIFICÂNCIA.
A dor que aqueles meninos me causavam era interna. Profunda. Porque mexia numa grande ferida: o medo de não ter valor no mundo. “Por que eu tenho que passar por isso todo dia? O que eu fiz pra merecer isso?” Queria desesperadamente que alguém me defendesse, me salvasse. E me mostrasse que, sim, eu importava e tinha valor. Mas ninguém conseguia. Profes e diretora acabavam sendo vítimas deles também. Embora eu só perceba isso hoje (naquela época eu sentia muita raiva), elas já tinham o suficiente pra lidar.
Daqui onde estou hoje vejo que a dor foi a menina quem viveu, mas a ferida é a adulta quem não consegue curar. Ainda me pego olhando para aquilo tudo com mágoa. Como se tivesse travado uma guerra particular. Lembro das inúmeras vezes que cheguei em casa chorando. Do quanto quis mudar de escola e do quanto desejei que todos eles morressem.
Sim, daqui onde estou, percebo também o quanto assumi o papel de vítima. E o quanto deleguei o papel dos vilões. Acabei num esquema onde um silencioso vitimismo deu força à kriptonita e eu me acostumei, além de ficar do lado de dentro da porta, a buscar proteção atrás dos outros. Isso sempre trouxe muitos incômodos, mas os incômodos comodamente têm suas vantagens.
O Super Homem nunca encontrou um antídoto pra kriptonita. A solução sempre é se livrar dela o mais rápido possível. E imediatamente procurar o sol, que é a fonte dos seus poderes. Como simples humanos não sei se conseguimos nos livrar das nossas kriptonitas. Sou das que acredita que, quanto mais a gente olhar ela nos olhos e aprender a conviver, menor ela fica. Mas sumir, não sei não. O que eu sei é que, me esconder do lado de dentro tem me mantido segura e protegida da dor. Mas também me priva de todas as maravilhas que quero tanto experimentar. Então, já deu. To aqui, na soleira da porta, contando com o sol pra recuperar os meus poderes também. Hora de regenerar e voltar a voar.